
Escrito por Caio Kim
Dizer que o mundo é um mundo de sofrimento não é, necessariamente, uma visão pessimista. É uma visão que impacta bastante, sem dúvida, no entanto, ela é muito embasada no conhecimento sobre o indivíduo e o mundo em acordo com um yoga específico, aquele organizado no Yoga Sūtra de Patañjali e também no Sāṅkhya.
Existe uma máxima que diz que todo ser humano almeja a felicidade, e assim, vivemos dia e noite em busca disso. Essa busca incessante gasta muito da nossa energia, pois muitas vezes acreditamos que encontraremos essa felicidade em uma compra, em um lugar melhor para morar, em um relacionamento diferente, em um trabalho mais rentável, em uma melhor posição no trabalho, em um reconhecimento, uma viagem, enfim, tudo isso demanda bastante energia, certo?
Para avançar no entendimento, é importante diferenciar dor e sofrimento. Dentro de uma visão evolucionista, a dor pode ser entendida como um mecanismo, uma tecnologia do nosso corpo em resposta ao ambiente. Fisicamente ela é imprescindível para a nossa autodefesa, basta pensar em quando você vai tomar um chá quente, caso a alta temperatura não fosse percebida através da dor, é muito possível que você queimasse todos os órgãos internos. A dor psicológica também ocupa um lugar de importância em nossa interação com a dinâmica da existência. De uma forma geral ela nos afasta do perigo, de uma situação que nos faz mal e suga nossa energia, mas também no desenvolvimento da auto-defesa perante as situações nem sempre prazeirosas às quais somos apresentados (as).
O sofrimento, por sua vez, leva em consideração a ignorância, a nossa incapacidade de enxergar as coisas como elas são e, de forma mais direta, de não saber quem realmente somos. Sinto prazer em conquistar algo, porém juntamente com a conquista já existe um sofrimento interno em, ao menos inconscientemente, saber que aquilo, algum dia, irá se transformar e não será mais do jeito que pensei que seria para sempre.
O padrão mais comum de se perceber é que quando uma pessoa se relaciona com algo ou alguém, aproxima-se tanto, através do desejo, que surge o apego, a ponto de parecer que este “objeto” faz parte da pessoa (sujeito). Existe uma tendência natural do ser vivo preservar sua integridade, então quando este objeto lhe é tirado, parece que uma parte de si também foi tirada.
Existem muitas ferramentas da mente para manter este objeto próximo, por exemplo o ciúmes e a raiva. E o que acontece é que essas ferramentas, ao invés de auxiliarem enquanto são necessárias, acabam por tomar conta do indivíduo.
Quando nos relacionamos com algo ou alguém criamos expectativas e está tudo bem formar pensamentos sobre o que virá, afinal de contas é também uma ferramenta útil para a integridade.
No entanto, é importante avaliar como se está fazendo o uso dessas projeções. Fica fácil colocar no texto que são apenas projeções, o desafio é perceber isso na vida, pois é importante ter em mente que nessa relação estabelecida pode acontecer exatamente o que esperamos, também pode acontecer menos do que esperamos ou mais do que esperamos, e, ainda, pode acontecer algo completamente diferente do que esperamos. Essa necessidade de controle tem a própria cara do sofrimento, pois em uma relação existe o sujeito, o processo e o objeto, e, como percebe-se, mal podemos controlar o sujeito pensante, pois desconhecemos quase que totalmente o funcionamento da mente e, ainda assim, sendo a grande ferramenta de interação com este mundo, não nos colocamos à investigá-la.
O padrão mais comum de se perceber é que quando uma pessoa se relaciona com algo ou alguém, aproxima-se tanto, através do desejo, que surge o apego…
Este Yoga tem essa proposta de conhecer a natureza da mente e mostra que tudo que está manifestado tem um começo e tem um fim, inclusive a dor que procuramos evitar e então os objetos com os quais o sujeito se relaciona passarão por essa ciclicidade. Não compreender isso, é o que se chama de falta de sabedoria e essa ignorância é que leva ao sofrimento.
A distância deste conhecimento levou a humanidade a situações extremas de ganância em que uns têm muito e se acreditam donos ou até mesmo acreditam que são essa riqueza, enquanto outros não possuem nem as questões básicas para sobrevivência, isso se tratando da mesma espécie. O que dizer então da relação com o mundo em geral?
O sentimento profundo de se conhecer, de compreender o ensinamento do yoga, passa pelo desapego dos castelos que construímos em torno de nossa identidade.
Como é dito no livro O Coração do Yoga: “Todos os fatores que levam à ocorrência do sofrimento operam em nós como forças que reduzem nosso espaço e liberdade e, em última análise, nos limitam.”
Se estivermos suficientemente alertas, podemos ter consciência desse jogo de forças dentro de nós o tempo todo.
A prática disciplinada deste Yoga permite o cultivo dessa mente viva e atenta, com lucidez, a única qualidade da mente em que o sofrimento não pode surgir, pois não há espaço para a ignorância, momento em que o próprio yoga é abandonado. Um dos nomes dados a essa qualidade especial da mente é discernimento. A sabedoria sobre o que é real e o que é ilusório (no sentido de não ser absoluto), o que é finito e o que é infinito, o que é escuridão e o que é pura luz. Luminosidade essa que nos revela a própria natureza e não deixa o pensamento fragmentado da identificação tomar autoridade sobre quem somos.
Encarar esse corpo e essa mente como relativos, como pertencentes à dinâmica, não torna pessimista a visão do mundo como um mundo de sofrimento. Estamos vivendo essa dinâmica para usufruir da multiplicidade, somos manifestações da própria vontade do Supremo em experienciar o mundo, nisso mora uma beleza fundamental.
Não me refiro ao mundo difícil que criamos para se viver, um mundo injusto, cheio de violências, mas na existência em si que é magnífica, do milagre do nascimento até a certeza da morte deste corpo físico e desta mente identificada.
Fazer deste mundo um lugar propício para a máxima expressão de cada ser vivente é perceber-se, enquanto individualidade, como a potência da própria expressão em si, conhecendo o que é aquilo que é completamente livre do sofrimento.
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