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Helder Araujo

Escrito por Graziela Spadari

Uma visão do Āyurveda e filosofias circundantes

Segundo o Saṃkhyā, uma das visões de mundo (Darśana) que embasam o Āyurveda, tudo no universo é composto pelos Pañchamahābhūtas, os 5 elementos primordiais. São eles: Ākāśa (éter), Vāyu (ar), Tejas (fogo), Āpa (água) e Pṛthvī (terra).
A palavra Saṃkhyā pode ser traduzida por “enumeração’, e é através do surgimento sequencial (daí enumeração) de diversos componentes (Tatvas), que a matéria vai surgindo conforme a conhecemos. O surgimento começa a partir da interação entre um princípio transcendental, perene, absoluto, imutável, consciente chamado Puruṣa e um outro princípio que é material, não absoluto. mutável, chamado Prakṛti.

Há algumas formas diferentes de entendimento desse fenômeno do surgimento do universo pela luz do Saṃkhyā (e muitas outras ainda pela luz de outros Darśanas), o que é muito comum no estudo das tradições orientais e mais especificamente no estudo das tradições filosóficas ligadas aos diversos sistemas hindus de estudo da existência.

“Isso se dá pela liberdade investigativa e pela forma da dialética e construção de conhecimento dessas tradições.

Para elas, muito embora nos manifestemos como seres individuais (Jīva) separados de deus e da natureza, no final das contas somos mesmo uma “coisa só”, literalmente. Logo, toda forma de saber e existir é apenas uma, e compreender isso é a base da felicidade plena e imutável.

O trecho abaixo, na Bhagavadgītā, livro tradicional desta cultura hindu, explica bem isso:

na tvevāhaṁ jātu nāsaṁ na tvaṁ neme janādhipāḥ
na chaiva na bhaviṣhyāmaḥ sarve vayamataḥ param

Tradução: “Nunca houve um tempo em que eu não existisse, nem você, nem todos esses reis; nem no futuro nenhum de nós deixará de existir.” BG 2.12

A partir dessa introdução, e me permitindo aqui pular muitas etapas desse conhecer incrível e tão vasto que não cabe em todas as elocubrações humanas para focar no “som”, o objeto desse texto, vamos entender que há um som primordial, o Om.

Entre muitos ditos, há um que eu considero didático, que diz mais ou menos o seguinte: esse “mantra-símbolo Om, amplificado na caixa de ressonância do vazio primordial, se propagou até criar o espaço e as galáxias.” Pedro Kupfer

Há em outras visões de mundo “não védicas” e nem orientais, outras menções ao som como origem do universo, como “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” João 1:1

De uma forma ilustrativa, a vibração do Om cria espaço para o surgimento do universo, das estrelas, das galáxias conforme conhecemos. Sem querer entrar em controvérsias aqui, mas apenas a título de ilustração, seria esse evento o que tardiamente foi denominado de Big Bang?

Se estão presentes em tudo (os 5 elementos), estão presentes em mim, em você, na natureza, na mente e, nos sentidos, nos órgãos dos sentidos e nos seus objetos.

Quero ainda citar alguns outros versos de João, que me serão úteis mais adiante para construção deste texto.

“O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu.” João 1:10

“A Palavra se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de verdade. E nós vimos a revelação da sua natureza divina, natureza que ele recebeu como Filho único do Pai.” João 1:14-15

Há versões para essas falas, a partir de diferentes crenças, mas aqui vamos ficar com a essência que é: o universo e logo o ser humano, surgem a partir de uma vibração sonora, e essa vibração sonora no princípio cria o espaço para que esse universo surja.

A partir da afirmação acima, vamos pular mais uma vez por cima de inúmeros conceitos existentes para se chegar ao fato de que, é a partir do espaço (o primeiro elemento primordial que surge), ou Ākāśa, que se dá a existência dos outros 4 elementos (Pañchamahābhūtas) que citamos mais acima.

Dá-se mais ou menos assim: 
“Apenas 10% do elemento primordial chamado Ākāśa (éter/espaço) possui movimento, e este pequeno movimento dá origem ao Vāyu (vento/ar), a fricção das partículas de Vāyu gera calor, dando origem ao elemento Agni (fogo). 

O Agni aquece as partículas que estão ficando mais densas e grosseiras durante o processo e as liquefaz, gerando o elemento Āpa (água) e o elemento Āpa, ao sofrer resfriamento coagula, surgindo então o elemento Pṛthvī (terra).”

Obviamente isso é figurado.

Representa a dinâmica da matéria em cada estágio, uma vez que, por exemplo, a água que sai da torneira, possui em si, a presença dos 5 elementos, mas a predominância de Āpa (água), pois como dissemos, tudo o que está manifestado possui os 5 elementos.

O descrição do processo acima fala “do momento imediatamente posterior à emanação da vibração do verbo, do som cósmico, ou Om. Daí surgem os 5 elementos que estão assim, presentes em tudo o que existe.

Se estão presentes em tudo, estão presentes em mim, em você, na natureza, na mente e, nos sentidos, nos órgãos dos sentidos e nos seus objetos.

Partindo disso, vamos entender ainda falando de Saṃkhyā que o sentido da audição, o órgão do sentido “ouvido” e os elementos/objetos que podem ser percebidos por ele são predominados pelo primeiro elemento grosseiro que se forma, o Ākāśa (éter/espaço).

Isso nos leva a diversos caminhos.

Vamos pensar do mais sutil para o mais grosseiro e nos permitir elucubrar teorias: se o Ākāśa (espaço) é o elemento grosseiro primeiro, e dentre os grosseiros, o mais sutil, logo, ele contém em si, a latência de todos os outros, que como vimos acima, surgem dele. Então, pensando assim, e lembrando que Ākāśa está na base da audição, o que ouvimos é capaz de dar forma à todo o resto do que chamamos corpo material.

Sim, essa é a hora de levar um susto e pensar: “uau, e aquela sonzeira que me deixava surda na adolescência, o que foi que fez comigo?”
Calma, não é motivo de desespero, mas é motivo de atenção.

continua abaixo

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Para o Āyurveda, há 3 princípios dinâmicos e estruturais do corpo humano que chamamos de Doṣas. Os Doṣas são antes de qualquer outra coisa, elementos que definem e representam a forma como o Āyurveda observa a fisiologia.

Doṣas não tem primordialmente a ver com pré-determinações comportamentais, conforme aprendemos a conhecê-los aqui no ocidente. Eles influenciam nosso comportamento, embora essa não seja sua função exatamente. Mas esse é assunto para outro artigo.

Os Doṣas assim como tudo que está presente no universo material, têm predominância de alguns dos Pañchamahābhūtas, em detrimento de outros, embora todos estejam presentes também em cada um dos três Doṣas, se aceitarmos a afirmativa acima de que tudo o que está manifestado no universo material, possui os 5 elementos.

Em tempo, a palavra Pañchamahābhūta é formada por três outras palavras a saber: Pañca que significa o número cinco, Mahā que significa grande e Bhūta que neste contexto, significa elemento grosseiro. Logo, podemos dizer que eles são os “cinco grandes elementos grosseiros”.

Bem, voltado aos Doṣas, esses elementos fundamentais do conhecimento Āyurvedico, vamos entender que o Doṣa Vāta é formado prioritariamente por Ākāśa + Vāyu (éter/espaço + ar), o Doṣa Pitta por Agni + Āpa (fogo + água) e o Doṣa Kapha por Āpa + Pṛthvī (água + terra).

Esses três Doṣas possuem funções vitais em nossa anatomia e fisiologia. Como exemplo o Doṣa Vāta é responsável por todos os movimentos, desde os mais diminutos até os mais visíveis, ele está intimamente ligado às funções do sistema nervoso, respiração, cognição, circulação, saúde reprodutiva, audição e muito mais. O Doṣa Pitta se relaciona com todas as transformações como digestão, metabolismo, o sentido da visão, termogênese, e por aí vai. O Doṣa Kapha está relacionado à construção de tecidos, nutrição, imunidade, equilíbrio dos fluidos e mais.

Como o tema central desse texto é o som, vou me ater ao Doṣa Vāta, por motivos óbvios já explicados acima. Ele é o mais sutil de todos os três. Extremamente sensível às flutuações externas e está na base do funcionamento de Pitta e Kapha. Se Vāta não estiver funcionando adequadamente, os outros dois Doṣas também não estarão, e isso significa funcionamento fisiológico deturpado. É dito que Pitta e Kapha não conseguem cumprir suas funções (algumas vimos acima) se o Vāta não estiver presente, uma vez que ele é o único que possui e promove movimento.

Pensemos o seguinte: Vāta possui Ākāśa com predominância em sua gênese e a Audição surge a partir de Ākāśa. A conclusão óbvia é que tudo o que atinge o sentido da audição, afeta o Doṣa Vāta e consequentemente todas as nossas funções fisiológicas, uma vez que Vāta carreia a função de Pitta e Kapha.

Alarmante não é?

O que entra por nossos ouvidos dita quem somos. Parece superlativo falar assim, mas não é.

Caso você seja daquelas pessoas que vivem com um fone de ouvido, que escutam música, tv, vídeos no último volume, repense seus hábitos. Alguns chamarão isso de pseudociência, e tudo bem, mas se seguirmos a lógica do Saṃkhyā (logo do Āyurveda), o que você escuta interfere em sua integridade física e emocional. E mais que isso, forma seu corpo, suas células.

Experimente, faça seus próprios testes. Por que há músicas que nos agitam, músicas que nos acalmam, músicas que nos fazem chorar, que nos dão vontade de dançar, palavras que nos machucam não só pelo significado, mas pelo tom?

Há um sistema de Yoga chamado Nāda Yoga.

Nāda significa fluxo de som e Yoga significa União, de forma simplificada. Nāda Yoga é o processo de união da mente individual com a consciência cósmica através do fluxo de sons. Este não é meu campo de estudo, logo, o que trago aqui sobre o tema Nāda Yoga é simples para compor o raciocínio que desejo formar com você. Quando o rio da consciência é obstruído pelo ego, Nāda ou sons especiais podem remover a obstrução, permitindo que o rio da consciência individual se una à sua fonte, o oceano da consciência pura, levando à realização última que é o autoconhecimento.

Nāda também é chamado de Śabda ou palavra (som) e é produzido ao atingir dois objetos conhecidos como Āhat Nād ou sem atingir dois objetos, o que é chamado de Anāhat Nād. O som Anāhat pode ser ouvido no Anāhata Cakra ou Cakra do coração. Anāhat Nāda é o som de Om e é a vibração primordial não criada através da qual o universo nasceu. Todos os outros sons emergem de Om conforme vimos.

Tudo é energia, e energia é vibração e as vibrações são sonoras. Logo, tudo manifestado no universo, do sol às bactérias, tudo tem seu próprio som e música. Todo o universo vibra com seu próprio ritmo e frequência. Através da prática de Nāda Yoga, seus adeptos acreditam ser possível transformarem-se em um com o universo e com o imanifesto.

Como todos os outros sons surgiram e são uma extensão de Om, um Nāda Yogī (praticante de Nāda Yoga) faz do som uma ferramenta para alcançar o som primordial Om e realizar assim a pura consciência.

Nas práticas de Nāda Yoga, há um efeito terapêutico como podemos imaginar, uma vez que essas vibrações também fazem ressonância com os elementos construtivos do corpo e da mente.

Para o Āyurveda, uma coletânea de conhecimentos médicos, usamos na prática o fato de que o contato equivocado com os sons adoece, e o contato correto, trata.

Há três formas de você interagir com o mundo, e para interagir com o mundo, o fazemos através dos 5 sentidos. Às três maneiras equivocadas chamamos de Trividhā Vikapla (três opções).

  • Āti Yoga (interação excessiva)
    Hīna Yoga (interação insuficiente)
  • Mithyā Yoga (interação inadequada)

Quando estamos falando da interação com os objetos dos sentidos (o mundo ao nosso redor), vamos chamá-la de Asātmendriyārthā Saṃyoga (a combinação inadequada dos sentidos com seus objetos). Então, Asātmendriyārthā Saṃyoga pode ser das três forma defeituosas citadas.

No caso da audição especificamente, ouvir excessivamente vozes altas (sons em geral) ou palavras faladas de maneira arrogante são exemplos de Āti Yoga, ou uso excessivo de Śravan Indriya (ouvidos).
Não ouvir voz ou som algum de forma corriqueira, ou tentar constantemente ouvir sons muito baixos é Hīna Yoga, ou diminuição do uso de Śravan Indriya (ouvidos). Ouvir palavras duras; notícias ruins, palavras nocivas e humilhantes, vozes que causam medo, etc. são Mithyā Yoga de Śravan Indriya (ouvidos). São apenas exemplos.

Como podemos imaginar, essas atitudes citadas como exemplos causam disrupção nas funções, quantidades e qualidades de Vāta Doṣa podendo levar às doenças causadas por ele quando em estado de desequilíbrio. Obviamente, isso se dá quando há rotina no erro. Para o Āyurveda, quanto mais rotineira for uma ação, mais dano ou benefício ela pode causar.

Há inúmeras ações que podem ser incluídas na rotina para apaziguar esses contatos inadequados, como colocação de um bom óleo vegetal prensado a frio e extravirgem como o gergelim nos ouvidos, a abstenção dos sentidos (no caso aqui, da audição) para realizar um “detox”, ouvir bons sons, calmantes, ouvir os sons da natureza.

Concluindo então, deixamos claro que o mau uso do som para nossa economia humana é um desastre.

Os sons influenciam na formação do corpo, e dos ativos da mente.

Vamos então cuidar de tratar nossos sentidos com respeito e amor, pois é através deles que interagimos com o mundo e podemos pleitear uma evolução enquanto seres individuais.

Namaskāra

 

De todas as criações, sou o começo, o fim e também o meio, ó Arjuna. De todas as ciências, sou a ciência espiritual do eu, e entre os lógicos, sou a verdade conclusiva..

Dito por Kṛṣṇa para Arjuna na Bhagavad Gītā, 10, 32 |
esse trecho foi utilizado como 
inspiração por Raul Seixas na música Gītā

Todos os textos postados neste blog são de inteira responsabilidade dos seus autores.

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