Escrito por Caio Kim
Quando se fala Gāyatrī mantra, geralmente, já se pensa em uma das mais antigas e famosas
passagens das escrituras védicas e que ainda fazem parte das devoções diárias dos sacerdotes védicos. Diz-se que ele traz bons presságios para uma prática.
O mantra é entoado em outras muitas tradições, centros de yoga postural moderno, por músicos e musicistas, enfim, uma recitação bastante conhecida por diversas pessoas que já ouviram falar de yoga.
Um dos motivos para sua notável fama é porque essa passagem aparece nos 4 vedas, com uma diferença na forma que aparece no Atharva Veda.
E já que tanto se canta e se fala deste antigo hino, trouxe aqui um texto para apresentar o significado deste trecho e também tratar do que significa Gāyatrī, para que assim possamos ter mais profundidade no conhecimento e nas práticas.
Este mantra tem, de fato, uma enorme importância na tradição sânscrita e sua recitação é poderosíssima.
Trata-se do verso abaixo:
Om bhūr bhuvaḥ svaḥ
tat savitur vareṇyaṃ
bhargo devasya dhīmahi
dhiyo yo naḥ pracodayāt
Ele aparece no terceiro livro ou Maṇḍala (3.62.10) do mais antigos dos Vedas, o Ṛgveda, e é traduzido como: “Nós meditamos naquela luz desejável do divino Savitṛ, que influencia os nossos ritos piedosos”*.
Também pode ser traduzido assim: “Que possamos atingir aquele esplendor excelente da divindade [deva] estimuladora [Savitṛ]; que ele fortaleça nosso intelecto [dhī].”
Essa criação inteira é Gāyatrī. E Gāyatrī é a fala – pois a fala canta (gayati) e protege (trayati) toda essa criação. Gāyatrī é realmente tudo isso, tudo o que existe. A fala, realmente, é Gāyatrī; pois a fala realmente canta e remove o temor de tudo isso que existe.
Ambas as traduções não levam em consideração a primeira linha, pois, em verdade, ela não aparece no Ṛgveda (3.62.10). As palavras “Om bhūr bhuvaḥ svaḥ” somente aparecem posteriormente no Yajur Veda e na Taittirīya Āraṇyaka (2.11.1-8).
É muito comum entender a tradução de bhūr bhuvaḥ svaḥ fazendo alusão aos três mundos. Assim:
– Bhūḥ – representa o plano terrestre, o físico.
– Bhuvaḥ – representa o plano atmosférico intermediário, o sutil.
– Svāḥ – representa o plano celeste, o mais elevado, o espaço, o causal.
Das diversas interpretações mais atuais, contendo esta primeira frase, temos:
“Meditamos sobre o poder adorável e a glória daquele que criou a terra, o mundo inferior e o céu (isto é, o universo), e que dirige nossa compreensão.” (Sivanath Sastri Brahmo Samaj, 1911).
escute o Gāyatrī no vídeo acima
“Diz-se que o primeiro verso (oṃ | bhūr bhuvaḥ svaḥ) é equivalente à riqueza contida nos três mundos. Diz-se que o segundo verso (tat savitur vareṇyaṃ) é equivalente à riqueza contida nos três Vedas. O terceiro verso (bhargo devasya dhīmahi) é equivalente a receber um presente que abrange todos os seres viventes. O quarto verso (dhiyo yo naḥ pracodayāt) se baseia na glória do Sol, cujo poder e riqueza permanecem inigualáveis. Portanto, nenhuma riqueza pode igualar os quatro versos do Gāyatrī!” (Brihadaranyaka Upaniṣad 5.14.5.
Como se nota, este é um mantra destinado ao deus Savitṛ, o deus que preside o dia, comumente associado ao sol, àquele que impele todas as criaturas para frente. Savitṛ é quem impele o sol a nascer.
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Na tradição, é comum se dizer que entre o nascer e o pôr, o sol está associado à deidade chamada Sūrya. Todo o período que precede o seu nascimento está associado ao deus Savitṛ que é representado com um aspecto dourado e de cabelos amarelos.
O Gāyatrī Mantra é destinado à realização do divino e é considerado como representando o Senhor Supremo, a encarnação sonora de Brahman.
O sucesso na recitação deste mantra permite acesso direto à Consciência Suprema. O livro Tools of Tantra de Harish Johari diz que repetir o Gāyatrī 125 mil vezes traz poderes. E diz-se que o poder deste mantra é percebido, principalmente, por quem tem a disciplina de realizá-lo no alvorecer e no anoitecer, já que é o momento notório da deidade homenageada.
A pronúncia é bastante importante na recitação de um mantra e o sânscrito tem uma complexa e variada estrutura fonética. O texto, dentro de sua limitação, apresenta alguns pontos importantes a se observar na entoação do Gāyatrī:
- Om é pronunciado como escrito, apesar da letra “o” ali estar representando o encontro “a+u”, a pronúncia é somente “o”.
- As palavras bhūr bhuvaḥ, possuem o encontro de “b+h”, esse encontro requer que o som após a consoante “b” seja aspirado, devido a presença do “h”. O “ū” indica um som longo”
- Em bhuvaḥ, o som do ḥ não é pronunciado.
- Svaḥ, o “v” é pronunciado com o som de “u” e o “ḥ” indica que a letra que precede será repetida no final de uma aspiração, como se fosse “svaha”
- As letras “o” e “e” devem ter sua pronúncia alongada.
- Em vareṇyaṃ a o “ṇ” é pronunciado com a língua tocando o palato e o “ṃ” tem um som um pouco mais fechado. .
- Dhīmahi também possui o encontro da consonante “d” com “h”, por isso o seu som é aspirado. O “ī” indica um som longo.
- Naḥ, na última linha, por regra, o “ḥ” assume o som de “f”, porém é pronunciado com os lábios e não com os dentes.
- Por fim, pracodayāt, o “c” tem som de “tcha” e não de “sha”.
Para elucidar ainda mais a importância da correta recitação vale ressaltar que os Vedas também colocam a importância central da palavra, da fala, na estruturação do conhecimento, pois sem a palavra não existiria a percepção de mundo tal como ela é passada. Temos um exemplo muito próximo do Cristianismo que diz que primeiro fez-se o verbo. Isso aparece de forma muito parecida na escritura sânscrita. É dito que quando a criação foi feita, os deuses associaram-se aos metros, sendo assim, cada metro é associado a um deus. A máxima: “deus criou a medida e a medida cria o deus” mostra que para algo ser criado existe uma força divina, porém são os próprios metros que revelam os deuses, pois a realidade, como é dita nas escrituras, só acontece porque existe a linguagem. Não tem como falar de existência se não existe a palavra.
Após apresentar essa conhecida estrofe, o texto vai avançar um pouco mais na profundidade do conhecimento da tradição sânscrita. Os Vedas contém partes que são apresentadas no formato de hinos, estes hinos apresentam diferentes métricas, ou seja, diferentes molduras em que as palavras se ajeitam e compõem o conhecimento. Uma dessas métricas recebe o nome de Gāyatrī. Então, quando se fala Gāyatrī, não se fala somente deste famoso mantra, mas sim de uma métrica que aparece diversas vezes nas escrituras e tratados.
O próprio Ṛgveda apresenta seu primeiro hino com esta métrica, hino dedicado ao deus fogo (Agni).
A estrutura consiste em 3 versos, cada um contém 8 sílabas, em um total de 24 sílabas. Essas sílabas são arranjadas entre curtas e longas da seguinte forma:
Longa – breve – longa – longa (pausa) breve – longa – breve – longa (pode ser breve também).
Assim é a moldura para os três versos desta métrica.
Para você se familiarizar mais um pouquinho com a escritura védica.
Nessa primeira camada dos Vedas, conhecida como Saṃhitā, aquilo que conhecemos como verso é chamado de mantra, então essa camada é a coleção dos hinos compostos pelos mantras, apresentando uma estrutura mais poética. A segunda camada já apresenta uma estrutura mais de prosa e é chamada de brāhmaṇa, geralmente traz uma explicação para os hinos da primeira camada. Os hinos são geralmente cantados, até mesmo para facilitar a memorização, e a própria palavra Gāyatrī tem sua origem na raiz “gay” que significa cantar (a mesma raiz que origina a palavra gītā, que significa canção).
“Essa criação inteira é Gāyatrī. E Gāyatrī é a fala – pois a fala canta (gayati) e protege (trayati) toda essa criação. Gāyatrī é realmente tudo isso, tudo o que existe. A fala, realmente, é Gāyatrī; pois a fala realmente canta e remove o temor de tudo isso que existe.”
Posteriormente às camadas mais antigas dos Vedas, surgiram outros diferentes Gāyatrī para diversas deidades. Três palavras aparecem em comum neles: vidmahi, dhīmahi e pracodayāt.
Vamos entender como elas funcionam na prática.
- A primeira frase contém vidmahi ou vidmahe que indica a contemplação da palavra que a vem acompanhando, como no exemplo abaixo do gāyatrī para Lakṣmī:
Oṁ mahalakṣmyai ca vidmahe |
viṣṇupatnyai ca dhīmahi |
tanno lakṣmī pracodayāt ||
A primeira frase indica que devemos contemplar a Grande (maha) Lakṣmī.
- A segunda palavra é dhīmahi que indica que devemos meditar sobre aquilo que a acompanha na estrofe como no exemplo do gāyatrī para candra (a lua):
Oṁ kṣīraputraya vidmahe |
Amṛta tattvaya dhīmahi |
Tanno candraḥ pracodayāt ||
A segunda frase indica que devemos meditar naquela que contém o néctar divino, o néctar da imortalidade.
- E a terceira frase contém pracodayāt, palavra que nos impulsiona na retidão, na disciplina do caminho certo guiado pela deidade em questão, assim como no exemplo:
Oṁ nārāyaṇaye vidmahe |
Vasudevaya dhīmahi |
Tanno Viṣṇu pracodayāt ||
O verso em destaque indica que Viṣṇu nos auxilia a manter essa disciplina, nos inspira no caminho certo.
Os exemplos citados acima são alguns daqueles que são vistos principalmente no Tantra. A época de apogeu do Tantra, em meados da Idade Média, promove uma democratização muito maior em relação ao âmbito religioso e de práticas espirituais. O próprio Gāyatrī é uma ótima demonstração disso, vamos entender…
O Gāyatrī mais conhecido contido nos Vedas, mencionado no início deste texto, possui, tradicionalmente, em sua forma erudita, diversas restrições para a sua prática. Dentre elas, somente uma casta específica, ou seja, os sacerdotes, homens, não estrangeiros, poderiam recitá-lo em acordo com uma série de especificidades. Já no Tantra essas restrições de casta, gênero e nacionalidade caem por terra, as práticas espirituais, o contexto ritualístico é aberto a todos (as) aspirantes. Atualmente, na divulgação do yoga pelo mundo, pouco se sabe sobre essa restrição em cantar o famoso Gāyatrī e ele é cantando abertamente, mas ainda, em algumas escolas tradicionais da Índia, essa restrição é adotada.
Hari Om.
“
A música tem poder da cura. Ela tem a capacidade de puxar as pessoas para fora de si por algumas horas.
Dito por Elton John
Todos os textos postados neste blog são de inteira responsabilidade dos seus autores.
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