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Os Aspectos Femininos na Tradição Hindu

6mar, 23 | 0 Comentários

Escrito por Caio Kim

Se você gosta ou não gosta de se conectar com as deidades, permita-se a leitura deste texto. Não deixe que essa mente de apego e repulsa atrapalhe um momento importante de aprendizado. O objetivo aqui é que você possa entender alguns dos motivos que fazem as deidades terem um papel central em muitas das práticas sacerdotais e não sacerdotais no hinduísmo.

Tendo ou não alguma prática vinda do hinduísmo, se você gosta das deidades, o texto vai te ajudar a entender a mistura e confusão toda em que está se metendo, isso pode te ajudar a não se atrapalhar tanto na vida e ter mais clareza na visão de mundo e uma abertura mais fidedigna para o seu aprofundamento. Se você não gosta das deidades, é um momento para deixar de lado seu julgamento e considerar que essa conexão, quando não confusa, pode sim ser uma boa prática para compreender melhor os fenômenos externos e internos, mesmo não sendo necessária para ti.

Não é só na tradição hindu, mas por todo o mundo, diversos saberes divinizam aspectos da natureza como forma de se conectar mais profundamente com o universo interno e externo. Esse é um dos motivos do porquê de termos tantas deidades nos diversos e diferentes povos.

As camadas mais antigas dos Vedas constituem uma seção voltada para a ação no mundo e apresentam cantos, rituais, ensinamentos em relação ao cosmos. Permeiam por isso tudo algumas deidades, dentre elas, o nosso foco, AS DEIDADES FEMINININAS. As diversas deusas são incorporações divinas como multiexpressões do aspecto feminino que, no nível humano, é a essência natural da mulher (ou de quem se reconhece mulher).
São seis as deidades fundamentais que aparecem nessas camadas mais antigas (isso em se tratando de um estudo considerando apenas a visão sacerdotal):  Vac/Sarasvatī, Pṛthvī, Āp, Aditi, Virāj, e Śacī/Indrani. Dessas deidades vamos falar sobre aquelas que aparecem de forma mais clara e constante.

Vac/Sarasvatī* está relacionada ao poder da fala, da expressão.

Existe uma passagem nas escrituras que relata a criação dos 3 mundos, através da simples emissão de 3 sons diferentes pelo criador. Esses sons, essa expressão revela o poder de Vac (posteriormente aparecerá como Sarasvatī). A mente tem um aspecto masculino e a fala feminino, a relação de ambas traz a presença e energia para a ação acontecer, mais especificamente, com a linguagem védica, Vac é o instrumento que Prajāpati utiliza para criar. E aqui já fica um pouco implícito o que vai se mostrar no Tantra (em algumas correntes, principalmente Śaiva) milhares de anos depois, o aspecto masculino sendo a consciência que é pura presença, porém inerte e o feminino sendo o poder, a força criativa dessa consciência. Esse papel importante da fala em diversas tradições, inclusive a védica, revela o quão preciosa é a passagem do conhecimento através da fala de geração após geração.

Do calor (tap) nas águas surge o ovo dourado de onde nasce Prajāpati, ele fala (vac) bhū, bhuvaḥ, svaḥ, criando os 3 mundos

Āp está relacionada com as águas, aqui um comentário para a adoração dessa deidade: a água é a grande responsável pela nutrição das cidades e vilarejos, algumas cidades eram construídas longe dos mares, não tinham um fácil acesso para o comércio e dependiam totalmente dos rios que abasteciam e nutriam suas terras e, por consequência, seus habitantes. A água em um nível mais concreto está ligada às nuvens, chuva, águas subterrâneas, rios, etc. E, em um nível mais abstrato, aparece como a matriz (o útero) que gesta todo o universo, de onde a matéria grosseira se deriva.

No Ṛg-Veda 10. 17. 10 diz-se:

Que a mãe água nos purifique (…) para que as deusas retirem toda a impureza. Então, eu renasço brilhante e purificado. (…) Como mães amorosas, nos dê uma porção do seu mais auspicioso fluído, você nos refresca e nos rejuvenesce.

A deidade Pṛthvī trata da terra que sustenta a vida, a Mãe universal de toda a criação física e a matéria manifesta em si dentro do processo cosmogônico.

Ainda no Ṛg-Veda:

Deixe-nos sempre mover pela terra firme, a mãe que produz todas as plantas, sustentada pelo dharma..

Só um comentário para fechar essa sessão de apresentação das deidades é que as deidades femininas são geralmente associadas à figura de mãe, isso aparece também com Aditi (a ilimitada) que é dita como a mãe que acolhe, em seu colo, a atmosfera.

Bom, seguindo, como dito anteriormente, essas deidades permeiam as camadas mais antigas dos Vedas e quando chegamos na quarta camada, conhecida como upaniṣad, aquelas ações para o mundo externo (das adorações, dos cantos e rituais externos) agora são trazidas para dentro. É a sessão do conhecimento sobre o indivíduo, textos que estimulam a reflexão sobre os aspectos internos. Neste momento, as águas, terras e o poder da expressão, da criação, perdem seu aspecto feminino e permanecem com sua função cosmológica.  

Algumas menções correlacionando macro e microcosmo já haviam aparecido anteriormente, na relação das deidades Indra e Indrāṇī, como exemplo, que aparece na segunda camada dos Vedas (brāhmaṇa), mostrando essa união cosmológica refletindo também no nível psicológico humano. Mas, é nessa quarta camada que tudo isso fica em evidência (a internalização das práticas).
Com os Vedas e seus textos acessórios (vedāngas) muitas visões emergem dessa base e a estrutura mitológica, cosmogônica, cosmológica, continua tomando diferentes formatos. O yoga clássico aceita os vedas e se atém mais às upaniṣads e ao nível psicológico do indivíduo, neste momento as deidades não estão em evidência, salvo algumas menções nas escrituras que compõe a base deste yoga clássico. Posteriormente, temos o advento do Advāita Vedānta e do Tantra que influenciam bastante a forma que o yoga chega até nós atualmente.

A partir do Tantra (mais fortemente séc.IX d.C), a representação do corpo e mente das deidades toma grande força com os símbolos, mantras e maṇḍala (mas esse é um assunto para outro post), as deidades tomam novamente um papel central nos rituais e muitas delas (obviamente com derivações) chegam até as práticas de hoje em dia e, se misturam com os conceitos de arquétipo da psicologia moderna, entre outras muitas misturas que são feitas.

Já que estamos falando de deidades femininas, existem 3 termos femininos muito importantes que perpassam esses tempos todos citados. Aparecem desde o Veda mais antigo (Ṛg veda) e vão tomando diferentes formas até o que conseguimos trazer de mais palpável para o conhecimento atual: Prakṛti, Śakti e Māyā. Se você conhece o Sāṃkhya/Yoga, o Tantra ou o Advaita-Vedānta, provavelmente já entrou em contato com uma dessas palavras.

Vamos entendê-las… lembrando que não basta a palavra ser do gênero feminino, mas sim a essência do que representam, constituir uma coerência com o que se entende por feminino.

O termo Prakṛti começa a tomar o sentido que é mais conhecido hoje após o desenvolvimento do sāṃkhya e Śakti somente com o crescimento das escrituras tântricas. Antes disso, não se consegue saber, de forma clara, se são mencionados como princípios femininos. Até mesmo é difícil diferenciar Prakṛti e Māyā, isso só fica claro posteriormente.

Dentre todas as associações que são feitas nos textos com esses termos é importante saber que:

    • Prakṛti** tem seu papel fundamental no sāṃkhya/yoga e é exposta como o princípio, a matriz, da materialidade. Alguns intérpretes dizem que a Prakṛti em si é o equilíbrio das 3 forças universais que darão origem a todo o universo quando estimuladas e desequilibradas (sattva, rajas e tamas – não entraremos em detalhes aqui). Então, o princípio feminino está correlacionado à manifestação da materialidade, do universo como o conhecemos.
    • Śakti é considerada a dimensão ativa de Brāhman (o Absoluto, o Grande). No sāṃkhya aparece como o poder de Prakṛti de se manifestar. Depois, no Tantra, aparece com um papel fundamental, pois, para o Tantra, o Absoluto possui os aspectos femininos e masculinos que são inseparáveis. O aspecto masculino (Śiva) só age através de sua energia, seu princípio operativo (Śakti).
    • Māyā está conectada a deidade Virāj nos saṃhitās (segunda camada dos vedas). Aparece como uma grande sabedoria que permite ao seu possuidor ou a si mesma a criar, planejar, realizar. Significa também uma habilidade divina ou um objetivo a ser atingido através de poderes superhumanos. No Advāita Vedānta, Māyā aparece em dois sentidos: 1) o aspecto criativo que manifesta o mundo e 2) o ilusório, no sentido de que aquilo que é criado por ela é essencialmente ilusório, nesse último sentido é também chamada de avidyā (ignorância).

Resumindo, algumas deidades parecem estar relacionadas à materialidade, outras se relacionam com a força da vida, energia cósmica da criação.

É no Tantra e outros movimentos populares não sacerdotais (principalmente dentro do Śaktismo) que as deidades femininas aparecem com maior predominância. Para o Tantra, tudo é divino e fruto da criação de Śakti. Tudo que nos relacionamos neste mundo reflete a Consciência Suprema e é também, ao mesmo tempo, a divindade em si. Ao mesmo tempo que tudo que está fora, está dentro, todo nosso ambiente interno também é fruto da criação de Śakti, até o ponto da máxima densificação para que possamos experienciar o mundo como ele é. Esse poder de criação é o mesmo poder (Kuṇḍalinī) que nos fará quebrar e dissolver as barreiras da identificação e conhecer a união com a Consciência Suprema, ou compreender a verdadeira natureza que somos ou atingir a liberação, seja lá qual linguagem e método sejam utilizados.

*A mente é masculina e a fala feminina e aparecem associadas diversas vezes como um casal. É dito que a mente pré-existe antes da fala, ela é mais fundamental que a fala, pois essa só expressa o conteúdo.
** Prakṛti tinha uma importância ritual de sacrifício e linguística nos Vedas antigos, porém não cosmológica, como aparece no sāṃkhya.
O texto referência para esse post é o The Rise of the Goddess in Hindu Tradition

Por Caio Kim

 

Para a criação do cosmos Brahmā necessita de Sarasvatī, a deusa do conhecimento; para sua manutenção, Viṣṇu precisa de recursos fornecidos por Lakṣmi, a deusa da riqueza e do poder; Śiva se torna o destruidor adquirindo força e inspiração de
Pārvatī. Sarasvatī personifica a sabedoria da natureza, Lakṣmi a generosidade da natureza, Pārvatī o poder da natureza de trazer espontaneamente e simultaneamente luz e de consumir a vida. No ciclo da existência as deusas compõem a roda da vida que os deuses fazem girar, são significantes e indispensáveis no processo cosmológico.

citação retirada do artigo Religiosidades, deusas e a polissemia do feminino na Índia | Religiosities, goddesses and the diversity of the feminine in India – Aline Grünewald*

Todos os textos postados neste blog são de inteira responsabilidade dos seus autores.

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